Somente quando toda forma de dualidade cessar, pode a alma chegar à sua mais elevada realização: So ham, “Eu sou Ele”, diz o místico hindu, e tenta com essa afirmação abolir a maior dualidade da existência, que é entre o homem e Deus. Islam, “Seja feita a vontade de Deus”, diz o muçulmano devoto, quando procura ser um com a Vontade Divinaem todas as suas manifestações.
Todos os homens buscam instintivamente a unidade. Pois o homem é um, e o mundo em que vive, outro. Os dois permanecem em contraste, ora felizmente, ora infelizmente. Como causa ou como efeito o homem e seu ambiente estão continuamente relacionados, cada um sendo alternativamente o precursor do outro. Algumas vezes o homem. Como causa, dita o que o efeito — suas reações física, emocional e intelectual ao seu ambiente — será. Em outras épocas, o que ele sentirá e pensará, será forçado pelos moldes em que sua mente e suas emoções foram colocadas, pelo seu caráter em vidas passadas. Noite e dia, o nosso único problema é fazer uma trégua com o nosso ambiente, para sermos “unos com a vontade de Deus”, ou para “aceitar o nosso Karma”. Expressamos o problema fundamental com diferentes nomes, e até que consigamos abolir a dualidade não há paz no coração, apenas breves repousos pelo caminho numa jornada parecendo sem fim.
Como esse objetivo será alcançado, qual o modo final de existência quando cada vínculo do coração for desatado, e quando, seguros de nós mesmos, olharmos para a eternidade serenamente contentes com o que quer que seja que essa eternidade traga? Um tal objetivo é a promessa oferecida para nós pelos grandes Instrutores, a paz do Nirvana,essa plenitude de bem-aventurança que rompe cada forma conceitual com que tentamos defini-la.
Uma coisa é certa sobre o nosso objetivo. Todos os instrutores atestam que ele não é uma negação, uma vacuidade, um mar vítreo no qual não há movimento. Muito poética é a analogia “a gota de orvalho desliza para o mar brilhante”. Mas o uso da analogia é apenas para sugerir a união do indivíduo com todos os outros indivíduos, e não para sugerir que depois dessa unidade ser atingida o seu resultado seja zero, no que o bem-estar do universo estiver envolvido. Por que deveríamos supor que “atingir a liberação” seja se tornar negativo, desaparecer no universo? Existe qualquer exemplo simples para mostrar que a energia possa ser aniquilada? A energia deve se transformar de uma modalidade de energia em outra. Pode uma avalanche em movimento subitamente perder a sua quantidade de movimento e desaparecer no ar? Não em um mundo da lei natural.
Como então podemos presumir que, porque um mukta, uma alma perfeita, é“liberada”, ela se torna negativa? Pode a energia de um ser poderoso como um Buddha — o Senhor Gautama é sempre descrito como balaviryasamangi, “dotado de força e de poder”— subitamente se tornar nada, porque “Ele entrou no Nirvana” ? Pode a compaixão quase infinita do Buddha Gautama para com os homens, essa poderosa compaixão para com todas as vidas, que foi o Seu único motivo por centenas de vidas de esforço para chegar ao Budado, a fim de mostrar aos homens o Caminho para a Bem-Aventurança, subitamente se tornar nada? Não há nenhum exemplo no mundo natural de uma tal cessação súbita de energia; por que deveríamos presumir que as leis naturais sejam totalmente invertidos no mundo sobrenatural?
Não, ao contrário, a energia deve sempre continuar em suas transformações. A bemaventurança em Brahman de cada mukta, ou alma liberada, deve produzir de algum modo uma mudança no universo manifestado. A verdadeira consumação da alma subentende a produção de grandes mudanças. Isto é, na verdade, o ponto crucial na evolução do homem.
Quando um homem busca dar ao universo uma grande dádiva, então a senda da ida muda para a senda do retorno. “O que eu darei aos meus companheiros ? Como poderei eu ser o espelho de Deus? De que maneira transformarei o universo para o Bem universal?” Quando nascem na alma tais questões, as ilusões criadas pelo eu começam a enfraquecer, e a alma vê claramente. Então, e somente então, a alma ouve o chamado do guru: “Venha!”
“Procura e acharás” é a máxima antiga. Mas o guru, esse Pai em Deus, que é destinado à alma desde o início dos tempos, não é encontrado simplesmente porque os olhos vêem a sua face. Muitos na Palestina viram o Cristo vivo e no entanto conspiraram para matá-lo. Há apenas um caminho para encontrar o Mestre, que é encontrando primeiro o nosso trabalho. Batamos à sua porta com os primeiros frutos da nossa colheita de trabalho, e ele abrirá. Esta é a velha, velha lei que nunca foi rompida. Ao grito de socorro do coração ou da mente, ele sempre envia o seu conforto, mas ele não abrirá. Mas onde o serviço tem sido prestado, e o grito da alma é para prestar ainda maior serviço, então a porta se abrirá de repente às visões de serviço. Mas não necessariamente às visões do Mestre. Se tais visões forem provavelmente úteis ao discípulo, o Mestre as dará, mas a decisão repousa apenas Nele. Mas para as maiores visões de trabalho, quando existe o pedido, a porta é sempre aberta pelo Mestre.
Quando a alma se torna uma com seu trabalho, então a Grande Paz lentamente começa. Daí por diante, a alma está “salva”; ela está salva para sempre da heresia do eu,que é a raiz de toda miséria. Ela então “entra na corrente” cuja maré a carregará para a“outra margem” onde começa a bem-aventurança do Nirvana.
Se apenas pudéssemos olhar corretamente em nosso próprio coração, e ouvíssemos aí a ainda pequena voz, ouviríamos onde está a nossa Senda, e veríamos sempre as visões do nosso trabalho. No fundo de nossa natureza somos altruístas e ansiamos por dar. Mesmo quando somos imprudentes no egoísmo, o grito da alma em nossas profundezas é: “Deixame encontrar como dar.” Quando, com vontade crescente, o coração e a mente são usados para subjugar a sede feroz pela sensação ,então,inexoravelmente, aparecem perspectivas de um trabalho. Pois alma e trabalho são termos intercambiáveis, e quanto maior o trabalho mais espiritual será a alma.
Como estátuas em uma galeria, permanecem diante da imaginação arquétipo após arquétipo do que podemos nos tornar. “Venham até mim todos vocês que labutam e estão sobrecarregados, e eu lhes darei o repouso” — e assim brilha em beleza o arquétipo dos Buddhas e dos Cristos. “Recebam a minha força e saiam para a vitória.” — relampeja em esplendor o arquétipo dos Manus. “A sabedoria atinge de um extremo ao outro do mundo;poderosa e docemente organiza ela todas as coisas” — canta em triunfo o arquétipo dos filósofos. “Quão belas são os pés sobre as montanhas daquele que traz as boas novas.” —revela na alegria o arquétipo dos artistas. “Na chama da minha devoção sejas tu purgado do pecado.” — sussurra o arquétipo dos santos. Advogado e santo, professor e administrador,curador e artista, organizador e pioneiro, esses e muitos outros tipos de trabalhadores existem no mundo das idéias como arquétipos — essas corporificações do bem, do verdadeiro e do belo, nas quais a Mente Divina quis se manifestar na eternidade.
Quando com imaginação treinada a alma medita sobre a história de suas dores, e vê elevando-se de suas chamas vívidas o arquétipo do que ela será, então nada permanece a não ser ser una com ele na felicidade e na miséria, na vitória e na derrota. Um novo Rahasya ou “segredo das idades” é daí por diante a nova palavra de poder da alma — tat karma, tad asmi, “o trabalho que sou eu.” Todas as experiências são então propositadamente forjadas como instrumentos para esse trabalho. Mesmo na câmara de tortura da vida, a contemplação do trabalhador é o seu arquétipo, e com o seu alento moribundo ele sussurra e dá testemunho, “O Trabalho, que sou eu”.
Não existe nenhum conforto final na vida, exceto em nosso trabalho. Mãos amorosas poderão nos dar alegria e repouso, mas a mensagem de amor é sempre que nós podemos nos preparar para um labor mais árduo. Para aquele que viu o seu arquétipo, nenhuma dor ou desapontamento poderá desfigurar o seu entusiasmo, nenhum céu poderá tirá-lo de sua realização. Os dois universos da alma e do ambiente da alma começam a se fundir em um, à medida que o trabalhador se torna cada vez mais digno de seu trabalho.
Quando a alma não puder nunca mais ser desviada de seu trabalho, quando a alma e seu trabalho forem um e não dois, então o objetivo estará atingido.
Este é o último trabalho do Mestre com seu discípulo. O aspirante e a senda devem se tornar um, diz um antigo manual. É para essa união que a vida nos pressiona a todos.
Mas quão brilhante é a senda, quão estimulante mesmo são seus perigos, quando a alma viu o seu arquétipo e fez o voto “Esse sou eu”. Uma tal alma não necessita mais de um guia,nem mesmo de um deus para adorar, diferente do seu trabalho. Aquela alma que se atreve a ser assim livre de sacerdotes e de livros, una com o seu trabalho, essa alma sozinha chegará à libertação.
extraído de: “O Segredo das Idades e Outros Ensaios Teosóficos, C. Jinarajadasa
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