( extraído do
texto:"A pena de Forrest Gump",
de Marco
Antonio Spinelli-Psiquiatra e Psicoterapeuta)
- Vó?
- O que?
- Ontem eu vi
de novo aquele filme que você gosta.
- Qual, minha
querida?
- Aquele ,
daquele homem que é meio bobo e fica contando
histórias no
ponto de ônibus...
- Ah, sei ...
Forrest Gump...
- Isso.
- E você
gostou do filme?
- Gostei, mas
não entendi uma coisa...
- O que?
- Quando
começa o filme, tem uma pena voando, que voa, voa, e cai no
colo do
Forrest Gump.
Ele guarda
"ela"no livro e começa a contar a história para
um monte de
gente.
- Exato.
- Então, no
final, ele abre o livro e ela sai voando outra vez.
Para que
serve essa pena, heim, Vovó?
- Talvez você
não tenha percebido minha linda, ele explica isso no final.
- Forrest Gump
não é uma pessoa igual às outras:
ele tem uma
inteligência limítrofe.
Não fale que
ele é meio bobo que isso é muito feio.
Ele tem uma
inteligência de uma criança de cinco anos,
por isso tem
dificuldade de entender as coisas
como as
outras pessoas.
Você quer
saber por que a pena começa voando
até pousar no
colo do Forrest Gump, e depois sai
voando de
novo, não é?
- Isso.
- Então...,
no final do filme, ele conta que na sua vida houve
duas pessoas
que o influenciaram muito: uma foi a sua mãe,
a outra, seu
amigo, que ele conheceu na guerra do Vietnã,
que é o
tenente Dan.
A mãe ensinou
para ele que ter uma deficiência não é
desculpa para
desistir da vida.
Ela se
recusou a colocá-lo em uma escola para deficientes,
e sempre
empurrou o filho para frente, ensinou-o
a não se
conformar com as suas próprias limitações.
Forrest foi
para a escola, estudou, teve um problema
na coluna que
o obrigou a usar aquele aparelho horrível,
você se
lembra?
- Lembro sim.
- Tem uma
cena que é a minha preferida , que é aquela em que os meninos valentões correm
atrás dele numa caminhonete.
Eles querem
caçoar dele e até machucá-lo, e a sua amiguinha grita:
- Corra,
Forrest, corra !
E ele sai
correndo, de aparelho e tudo, a caminhonete
atrás dele,
os meninos caçoando..., e à medida que ele corria,
o aparelho
vai caindo, pedaço por pedaço, e quanto mais
ele se
livrava do aparelho ortopédico, mais rápido
ele conseguia
correr, mais ele deslanchava, até entrar
correndo em
um campo gramado e sumir ao longe,
deixando para
trás os seus perseguidores...
- Vó?
- O que?
- Você está
chorando?
- Não, ... é
que eu esquecí de pingar o colírio
(falou isso
enquanto enxugava algumas lágrimas).
- Por que
você gosta tanto dessa cena, Vovó?
- Porque eu
acho essa cena muito emocionante. Ela tem um significado maior
do que está
na tela.
- Qual o
significado?
- Na vida, a
gente fica tentando endireitar tudo, e às vezes temos que passar muito, muito
medo para podermos nos livrar de nossos aparelhos, de nossas muletas.
Forrest
descobre que já está pronto, que pode correr como ninguém, e mais longe do que
qualquer menino valentão e bobo que se acha grande coisa ...
Olhou para a
neta, que a olhava fixamente.
- Vó?
- O que?
- É para isso
que temos medo?
- Acho que
sim.
- Temos medo
para tirar as muletas?
- E os
aparelhos. E ir para frente.
- Legal.
- Fala
vovó..e a pena?
- É mesmo meu
amor, já ía me esquecendo...
Eu te contei
que a mãe de Forrest Gump o ensinou a nunca sentar sobre seus problemas, a
nunca se intimidar com as suas dificuldades.
Ela ensinou
pra ele que, na vida, Deus dá uma série de cartas para a gente jogar o jogo, e
temos que aproveitar as nossas cartas do melhor jeito possível.
- E a pena?
- Já vai, já
vai... a outra pessoa importante na vida de Forrest Gump é seu amigo,o tenente
Dan, certo?
Juntos, eles
foram para a guerra, tiveram um pesqueiro, montaram uma empresa e ficaram muito
ricos.
E o tenente
Dan ensinou que na vida, a gente é como uma peninha levada pelo vento, de um
lado para outro, e nunca tem como descobrir para onde vai o sopro de Deus...,
nunca a gente sabe para que lado vai a pena.
Fez um
silêncio grave.
- Como assim?
- Quando você
crescer, vai perceber como nosso destino é caprichoso, meu amor..
Um dia
estamos aqui, outro dia estamos lá, como se tivesse alguém assoprando a vida
pra lá e pra cá, pra lá e pra cá.
- Quer dizer
que a gente não sabe para onde vai essa pena ?
- A gente não
sabe... mas, quando você chegar na idade que chegou a Vovó , vai perceber os
caminhos misteriosos que a pena toma no ar, até pousar, segura, no colo de
Deus.
Mas isso a
gente só descobre depois de passar muito tempo tentando
adivinhar.
- Vó?
- Oi?
- O que
acontece quando a gente pára de tentar adivinhar
para onde vai
essa pena?
- A gente se
deixa levar pelo vento, minha querida.
A gente joga
da melhor forma que puder, com o máximo de empenho, mas também respeita as
linhas do vento.
- Gostou?
- Gostei,
gostei muito... sabe, Vó, será que um dia esse vento vai te levar pra longe de
mim?
- Não, meu
anjo... por mais longe que vão nossas penas,
nosso coração
vai estar sempre perto um do outro, tá bom?
- Tá bom.
Ficaram num
silêncio de fim de conversa.
- Eu vou
brincar um pouco, tá?
- Isso, vai
brincar de Forrest Gump.
- Vou correr
até cansar.
- Isso. Vai
mesmo.
Mal conseguiu
disfarçar a voz embargada de lágrimas.